-Não tem provas.
-Mas tia Nélia, dá pra ver que é você, não faz sentido negar.
O advogado rodou o vídeo mais uma vez. Nele, um grupo de pessoas subia a rampa do Palácio do Planalto. Entre elas, tia Nélia, vestida de roupa verde, com um lenço amarelo na cabeça, trotava a passos miúdos, falando para a câmera:
-Estou me sentindo na Sapucaí! Viva a pátria! Viva a força do povo brasileiro por uma sociedade cristã e de bem!
Atrás dela, um homem que carregava sozinho uma bandeira pendurada numa haste e um fuzil de plástico gritava: Viva Bolsonaro!
-Eu não sabia que eles iriam invadir – replicou a tia Nélia no pátio externo da prisão, olhando para o vídeo desolada.
-Dona Nélia, nós tivemos sucesso com o pedido de sua liberação. Em síntese, a senhora pode ir para casa, mas vai ter que usar tornozeleira – falou o solícito advogado que, com muita sagacidade, preferiu não entrar em maiores discussões.
Em casa, cansada dos dias na cadeia improvisada e do sacolejo do ônibus, tia Nélia pegou o celular para tranquilizar família e amigos gravando um vídeo trêmulo e mal enquadrado em que dizia:
“Oi, gente, passando para dizer que estou bem e já estou em casa. Foi tudo muito sofrido, fiquei à base de sopa e café com leite apenas, morrendo de saudade de todos vocês. Apesar de eu ter a saúde sensível, nada aconteceu porque Deus cuidou de mim. Foi uma satisfação lutar pela liberdade do meu país e acabar com a soberba do Xandão.”
-Não pode dizer isso, tia.
-Por que não?
A sobrinha paciente respondeu:
-Porque a senhora acabou de sair da cadeia. Quer mais confusão, é?
-Tá vendo, olha a censura do PT aí.
Ficou pensativa e em silêncio, mas só até o celular fazer o plin da notificação de uma mensagem nova.
-Olha a petista da Jucilene aqui falando coisa no grupo da família. Essa sirigaita!
A mensagem era:
“Boa tarde, família. Bem-vinda de volta, tia Nélia. Vou deixar uma mensagem para a reflexão de todos. A sapiência é um dom dado por Deus aos homo sapiens. Devemos usá-la diariamente para tomar nossas decisões e agradar Àquele que nos presenteou.”
Tia Nélia até tentou se conter, mas não conseguiu:
-Obrigada, Jucilene. Mas quero deixar claro que não sou homo sapiens coisa nenhuma. Eu sou hétero! Porque Deus fez o homem, mas viu ele solitário e criou uma mulher para lhe fazer companhia, não foi outro homem não. Essa foi a vontade de Deus! Não venha com sua sismologia de gênero de esquerdista pra cá não.
Antes que tia Nélia pudesse continuar sua discussão com Jucilene, sua sobrinha se aproximou com sutileza e expressão tensa para dar a notícia:
-Tia Nélia, aconteceu uma coisa.
-Que foi agora?
-A senhora viralizou.
-De novo?
-Dessa vez foi pior.
A sobrinha lhe passou o celular e tia Nélia arregalou os olhos assim que viu o cenário. No salão do plenário, tia Nélia escrevia em uma vidraça com o que parecia ser as próprias fezes.
Era o texto que metade do Brasil queria saber quem tinha escrito: SOCORRO, SOU SEM SAL!
Ela escrevia em meio a risadas e gritos histéricos, até que ela olhou para câmera e gritou apontando para a vidraça cagada: “olha o Xandão aqui!”. Uma leve confusão se seguiu e a gravação ficou fora de foco. Fim do vídeo.
O texto acima foi realizado em parceria com pessoas que me mandaram palavras aleatórias que começassem com a letra S. A ideia era usar todas as palavras enviadas em um único texto. As palavras enviadas foram: sacolejo, saudade, solícito, sapucaí, sagacidade, sucesso, satisfação, sofrido, silêncio, solitário, sentido, sirigaita, sismologia, síntese, socorro sou sem sal, sapiens, sopa, sapiência, sensível, sociedade, sutileza, soberba, sozinho.
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