Que a arte imita a vida todo mundo sabe, pois uma de suas funções é fazer com que o ser humano, por mais comum que aparente ser, seja representado com todas as suas particularidades e imperfeições. Para isso, o artista precisa usar de suas técnicas e de alguns floreios para transformar o, por muitas vezes, banal em algo encantador e/ou instigante. Eu já fiz um texto aqui em que falo da inspiração de Tolstói para a criação de Anna Karenina. Nesse livro, por exemplo, o autor pega um caso real, acontecido próximo a ele, e com imaginação e sensibilidade, transforma-o em uma história fictícia.
Entretanto, há casos em que a vida real literalmente, de forma nua e crua, pode também virar uma obra de arte. São situações em que os personagens na obra correspondem inteira ou parcialmente aos da vida real, assim como os acontecimentos da história. Eu poderia citar diversos exemplos, nas mais variadas modalidades, em que isso ocorre, mas aqui eu vou falar especificamente de dois casos: a série O assassinato de Gianni Versace, da FX, e O último imperador, filme de Bernardo Bertolucci de 1987.
As duas tramas são bem diferentes, como veremos, mas ambas se tratam de histórias verídicas e que caíram como uma luva em formatos, um televisivo e o outro cinematográfico, que tiveram um olhar minucioso sobre os acontecimentos. Claro que as duas adaptações têm sua parte imaginada e é aí que entra o elemento que as transforma em arte.
No primeiro caso, O Assassinato de Gianni Versace, o produtor trabalha para tentar entrar na cabeça do assassino que chocou o mundo no ano de 1997, quando matou o famoso estilista italiano Gianni Versace. O objetivo da série não é mistificar o assassino, aliás acho que ninguém em sã consciência faria isso, mas tentar entender o que o motivou a cometer os crimes. E quando eu digo “entender” não quero dizer desculpá-lo, mas tentar atribuir uma lógica ao que parece não ter explicação. É claro que não há uma resposta aceitável para tamanha atrocidade, mas a razão por trás dos fatos, pelo menos de acordo com a série, é puramente psicológica, uma tragédia causada pela psicopatia e pela necessidade inerentemente humana, mas que nesse caso se tornou uma obsessão, de não aceitar sua ordinariedade.
Já no filme O último imperador, nós vemos algo diferente. Enquanto Andrew Cunanan destruiu a vida de muita gente por querer ser especial. Em O último imperador conhecemos a tragédia de quem nasceu com a missão de ser diferente e, por isso, pagou um preço muito caro. Com a China transformada em república, um jovem imperador passou a simbolizar duas coisas: 1) a esperança para os que torciam pela volta do império e 2) a lembrança a ser esquecida por aqueles que não queriam seu retorno. Esses últimos o colocaram em uma prisão de ouro, a cidade proibída, de onde não pôde sair nem para o enterro de sua mãe; enquanto o primeiro grupo o colocou em uma bolha fora da realidade que, uma vez rompida, causou-lhe a angústia de ser um imperador cujas vontades se resumiam apenas a caprichos de adolescente, que não causavam a menor interferência política. E foi assim toda a sua vida, de prisão em prisão, como um imperador sem império e sem liberdade, até a sua morte.
Os dois casos que mencionei revelam que a vida fornece vários exemplos que são perfeitos para se tornarem arte, não apenas como inspiração, mas também como diamante bruto que precisa apenas ser um pouco lapidado. Aos artistas – escritores, compositores, artistas visuais – é necessário ter o olhar sensível para identificar essas histórias, a capacidade de enxergar nas entrelinhas e fazer os questionamentos corretos. Dessa forma, a história de um imperador de um império falido e de um gigolô assassino podem se tornar peças de grande valor.
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