Categories: Crônicas originais

Uma tatuagem de guitarra

Julinho tinha dezoito anos, gostava de guitarra, dizia que gostava de viajar – apesar de não ter viajado muito em sua vida – gostava de desenhos japoneses, e os desenhava, muito bem por sinal. Julinho também gostava de namorar, nunca teve muitas namoradas, mas gostava. Sua dificuldade maior era só começar a conversa, mantê-la, e fazer as moças verem o quão interessante ele era. Ele tinha certeza, por sua vez, que bastava que elas o conhecessem para que percebessem seu valor.

O gosto musical de Julinho, por exemplo, era um motivo de orgulho para ele. Gostava de música boa, dos bons guitarristas e do bom do rock, mas não era qualquer menino roqueiro não. Tinha orgulho de ter um leque de repertório melhor do que muita gente, não era um mero iniciante. Admirava a velha escola: Janis Joplin, Rolling Stones, Beatles, mas curtia também a nata dos anos 90 e 2000: Linkin park, Evanescence, Nirvana. Os atuais, achava meio fraquinhos. Com um gosto desse, sabia que era um bom partido, bastava então fazer com que as moças soubessem.

Pensou em fazer uma tatuagem que mostrasse logo um pouco do seu gosto refinado. Decidiu-se por fazer uma grande guitarra no braço esquerdo, com chamas ao fundo em vermelho e laranja. O resultado foi bom e logo nos primeiros dias sentiu-se bem esbanjando a sua categoria e ousadia.

Depois de um tempo, viu que muitos meninos faziam tatuagem de guitarra e ressentiu-se porque sabia que ele não era só um roqueiro, mas tinha bom gosto e repertório, queria destacar sua individualidade. Fez então uma tatuagem do Jim Morrison no outro braço. Com isso, ele esperava mostrar sua diferença: um jovem nos vinte anos que admirava Jim Morrison com certeza não era qualquer um, os inteligentes veriam isso. O resultado ficou melhor do que esperava, ficou grande e imponente como era o cantor e lhe parecia que tinha servido bem aos seus objetivos; as pessoas quando o conheciam já o perguntavam sobre a tatuagem e algumas moças, já visivelmente interessadas, puxavam assunto e falavam de rock.

Quando um ano ou alguns meses se passava, as tatuagens que tinha no corpo lhe cansavam e Julinho pensava em colocar mais alguma coisa: o escudo do seu time, o ano em que eles foram campeões, o seu cachorrinho de estimação de quando tinha dez anos, um personagem de algum anime aqui, um lema escrito em japonês ali. Colocou também o nome de sua primeira namorada, o que fez com que, quando terminaram o namoro, colocasse uma águia por cima, símbolo de força, e ela precisou ser grande e preenchida, quase em três dimensões, para não deixar rastros do que havia por baixo. Depois de alguns outros términos, decidiu fazer uma homenagem aos pais e tatuou os nomes deles nas costas, cada um de um lado – queria mostrar que possuía um amor maior e incondicional, como dizem.

Depois de ter os braços, pernas e costas já cobertos, algumas pessoas começaram a torcer o nariz, sua família principalmente. Suas tias já chatas e velhas faziam cara de desgosto quando descobriam uma nova tatuagem que ele havia feito. Até seu pai, que costumava ter uma cabeça mais aberta, certo dia falou:

“Cuidado, daqui a uns dias a gente só vai ver seus olhos.”

Cansado de tanto aporrinhamento e com vontade de chocar, fez uma tatuagem no rosto, um lagarto verde no canto esquerdo, cujo rabo foi moldado na curva do seu queixo e uma de suas patas lhe tomava a bochecha. A reação das pessoas foi de assombro. Sua mãe, ao ver, ficou parada na sua frente sem palavras e ele sorriu com sua surpresa. Em suas redes sociais, ele virou um fenômeno, sua foto era compartilhada em grupos e o número de seus seguidores aumentava a cada dia numa velocidade impressionante.

Todas as coisas que ele queria simbolizar de repente ficaram sombreadas pelo conjunto de todas as suas tatuagens. Ele não era mais lembrado como o roqueiro, nem como o torcedor do Botafogo, nem como o filho que fez homenagem aos pais e, sim, como o rapaz das tatuagens e isso se tornou seu assunto de especialidade.

Os rapazes o procuravam pedindo dicas e ele fazia vídeos e publicações contando a história de cada uma das figuras. No início, ficava intrigado pelo interesse das pessoas que agiam como se fossem fãs. Mais tarde, já acostumando-se com o prestígio, fazia disso seu orgulho. E, claro que agora que alcançou tal posição, não podia deixar as tatuagens de lado e preenchia seu corpo com algumas mais. Sua preocupação agora era procurar as mais estilosas, as que tinham chance de se tornar sucesso entre os seguidores. Antes de se dar conta, seu corpo já estava 100% coberto e o rosto estava quase lá. Só lhe faltava um espaço: a região entre o lóbulo da orelha direita e a boca. Sem pensar duas vezes, ocupou ali também. O desenho não dava para saber bem o que era, só se sabia que ocupou de vez o último espaço livre e, de sua pele antiga, não se via mais nada.

Olá, obrigada por ter chegado até aqui. Nesse espaço, eu costumo dilvulgar crônicas originais por mim escritas. Portanto, se você quiser continuar acompanhando o meu trabalho, siga-me nas redes sociais. Um abraço!

Eva Maia Malta

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