Mahler e a poesia em A canção da Terra

 Um vislumbre da solidão do homem perante o mundo.

“A canção da terra” de Gustav Mahler foi um doce achado na minha vida dentro da música erudita. A música, cuja versão que eu mais gosto você pode encontrar aqui, se trata de uma sinfonia composta por seis canções. As letras são inspiradas na poesia chinesa e nos faz vislumbrar a efemeridade do homem contraposta à eternidade da terra.

Em quase todas as canções, a bebida é um tema protagonista. Ela funciona como um objeto simbólico do desespero pela mortalidade e da falta de esperança. Além disso, a palavra terra – que aqui possui uma conotação de planeta, ou natureza – também é recorrente, colocada em sua justa posição de grandeza em relação ao homem e suas dores, assim como sua característica de eterna.

Abaixo eu faço um resumo das 5 primeiras canções e destaco nelas o que mais me chamou a atenção. Faço também uma descrição mais detalhada da canção 6 que, para mim, é a mais bela e mais significativa de todas ao narrar uma despedida entre dois amigos, apresentando os temas de solidão e desesperança agregados à serenidade.

Canção 1: “A canção de beber da tristeza da terra”, imediatamente revela ao ouvinte a tendência niilista que percorre toda a sinfonia. Dois amigos, em um bar, estão dispostos a beber até não poder mais e um deles pede para cantar a canção da tristeza, onde diz:

“O céu é sempre azul, a terra certamente irá permanecer e florescer na primavera. Mas você, homem, que longa vida tens?”

E termina com uma frase que resume sua desesperança:

“Obscura é a vida, obscura é a morte!”

A canção 2 quebra a intensidade da canção 1 trazendo, ao invés de dois bêbados fanfarrões, “Um solitário no outono”. Nesse caso, a lamentação em relação à vida é manifestada através de uma contemplação da natureza na estação do outono, onde “a doce fragrância das flores passaram” e “um vento frio inclina suas hastes”. O solitário aqui espelha as características do ambiente com o estado de sua alma ao dizer:

“O outono demora muito em meu coração.

Sol de amor, não irá mais brilhar e gentilmente secar minhas amargas lágrimas?”

As canções 3 e 4, “Juventude” e “Beleza”, respectivamente, trazem, por sua vez, uma aura mais alegre para a obra, não como fonte de esperança, mas como a lembrança de dias alegres vividos na juventude. Na canção 3, essa alegria é colocada através de jovens que apenas estavam “bem vestidos, bebendo, conversando”. Em ambas as canções, Mahler nos leva a crer que essa felicidade existe devido a sua inocência e falta de conhecimento da vida. 

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A canção 5, “O bêbado na primavera”, também nos oferece uma melodia alegre e aparentemente otimista, mas cuja letra, na verdade, traz um interessante diálogo entre um pássaro e um homem. Este último, questionando-se se a primavera já chegou, deseja apenas beber até não poder mais. Diz que cantará “até a lua brilhar no negro firmamento” para em seguida voltar a dormir. E termina revelando a sua falta de esperança e ânimo: 

“O que é a primavera para mim? Deixe-me estar bêbado.”

E aí vem a canção 6 que, em minha humilde opinião, é uma verdadeira obra-prima e o ponto alto da sinfonia. Eu considero todas as canções anteriores como um prelúdio para essa que é a última e mais longa de todas elas, durando quase a metade da música inteira.

Der Abschied, ou O Adeus, começa com precisas descrições da natureza ao anoitecer, revelando o entorno do personagem em um ambiente que o vai deixando sozinho, afinal as flores estão empalidecendo, os pássaros se empoleiram silenciosamente em seus galhos, um homem vai deitar-se com uma “felicidade esquecida” e ele fica só, à espera de seu amigo. Essa primeira parte é toda em primeira pessoa e o homem descreve por conta própria sua angústia, dizendo “Eu espero para dá-lo um último adeus… Onde está você? Você me deixa sozinho”. Até que exclama: “Oh, beleza! Oh mundo eterno de amor-vida-bebida!” e seu monólogo é seguido por um interlúdio da orquestra.

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Esse interlúdio é feito de uma melodia ondulante, em que nós podemos imaginar o outro amigo se aproximando, carregando em suas costas o peso da sua existência. Ela serve de introdução para o enfim acontecimento do adeus. O narrador então deixa de ser o homem solitário para assumir uma posição de observador e contar à distância a despedida dos dois amigos. O recém-chegado, questionado para onde iria e porquê, responde que vai perambular pelas montanhas e de volta a sua casa.

“Ah, meu amigo. A sorte não foi gentil comigo nesse mundo!”

E afirma que, enquanto seu coração cansado simplesmente esperava por sua hora, a terra continuaria a florescer e a viver, alheia à dor do homem e à sua insignificância. No clímax, que corresponde também aos últimos versos, o homem, com serenidade, adora à terra, reconhecendo a irrelevancia de sua dor e proclamando por fim a constatação de que, independentemente dele, a vida sempre se renova:

“A querida terra em todo lugar floresce na primavera e cresce em verde renovado!

Em todo lugar, e para sempre, azul é o horizonte. 

Para sempre… Para sempre…”

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