[POEMA] O próprio breu

É preciso noite pra que num acordar assustado

Tudo ao redor me pareça tão impressionante.

Aquele lençol cobrindo aquelas pernas de frente àquela TV

Aquele eu deitado na cama

Aquele corpo que se chama eu e se chama Eva

Aquele saco de lembranças 

O que são as lembranças naquela escuridão semiconsciente? 

São nada.

Tanto acaso na formação dessa Eva

Que nem poderia se chamar Eva, poderia se chamar outra coisa

E ter encontrado outras pessoas, mas encontrou aquelas.

E que está distante delas

Para quem nesse momento, nesse segundo de escuridão, também é nada

É só um corpo sozinho deitado numa cama qualquer

Envolvido num casulo de noite

Indiferente a tudo.

É preciso dia e afazer pra voltar a me iludir de ser alguém

Um saco de lembrança produtivo

Um conjunto dismórfico de experiências passadas

Vivendo num tempo que não se mede

Que se torna o que?

Um rastro que não se vê, mas que se sente?

Um breu iluminado?

Só a noite para dar cabo disso.

Na madrugada silenciosa de semi morte

Que me espanta nesse corpo que chamo de eu

Que chamo de Eva

Mas que podia ser Mar

Podia ser pedra e madeira

Podia ser lã de ovelha

Podia ser o próprio breu.