Masterclass: Maria Callas e o susto pela ordinariedade

Em um domingo recente fui assistir à peça Masterclass, cuja personagem principal é a soprano Maria Callas, considerada por muitos a maior cantora lírica de todos os tempos, que foi interpretada por Christiane Torloni. As minhas impressões da peça foram extremamente positivas; o texto possui muito humor e sagacidade e consegue tratar com bastante cuidado as letras das óperas usadas na trama.

Para leigos e apreciadores, essa atenção dada à música trouxe uma beleza a mais à história por jogar um pouco de luz em temas como arte e interpretação na música erudita e também por realçar a poesia que já está presente nessas canções. Além disso, a peça consegue encaixar os acontecimentos da vida pessoal da cantora, colocando-os como lembranças de uma personagem que há muito tempo já perdeu sua glória, mas cujas marcas estão talvez mais vivas do que nunca, já que não possui mais o escape dos palcos para transmitir, e amenizar, sua dor. É nesse segundo ângulo da peça, onde a vida pessoal da artista é colocada sob holofotes, que não pude deixar de notar no texto uma ponta de espanto com a ordinariedade presente por trás da glória da artista. 

Maria Callas foi uma diva na sua época. Uma mulher famosíssima, chamada de “a grega mais famosa do mundo” e por seu brilhantismo nos palcos foi alcunhada de “A divina”. Ela inspirava admiração e emoção, deslumbramento e intimidação; sentimentos comuns por se tratar de uma grande estrela e Maria Callas não era só uma grande estrela, era uma das maiores e mais ofuscantes da música erudita, que sabe como poucos colocar suas estrelas em seu altar sagrado.

Sendo assim, é normal que as pessoas, e até a própria artista, tenham se esquecido da mulher por trás do mito, ou melhor, da mulher por trás da profissional, porque era isso que ela era, não? Uma profissional, boa no que fazia. E com esse esquecimento vem o susto: como assim uma mulher com inseguranças por trás das cortinas? Como assim uma mulher rejeitada? Sim, foi assim que ela terminou: uma mulher rejeitada pelo amante, trocada por outra como tantas outras mulheres por aí. O curioso nessa história para mim é o quanto a ordinariedade das pessoas ainda assombra a muita gente.

Claro que estou falando de uma peça de teatro e que seu texto serve também para um propósito de entretenimento e nem sempre será possível fazer uma pintura muito sofisticada de todas as coisas, além do fato de seu foco estar na concepção que a própria Maria Callas tinha sobre si mesma. Mas faço essa reflexão porque esse assombro me lembrou duas outras obras que, direta ou indiretamente, abordam esse mesmo fenômeno. Uma foi a série Feud: Bette e Joan (uma série, em minha opinião, muito subestimada) em que a vida pessoal de duas grandes atrizes é posta às luzes e mostra o efeito que a percepção da ordinariedade causou nelas. O principal motivo para esse encontro é semelhante ao que aconteceu a Maria Callas e pode ser resumido a grosso modo à idade, pois, uma vez avançadas, suas profissões não mais as valorizavam como antes. Bette Davis soube encarar isso com mais sobriedade, enquanto para Joan Crawford foi um fardo pesado demais e a consequência foi o declínio antecipado e acelerado. 

O outro exemplo foi o livro A imortalidade, de Milan Kundera, sobre o qual eu já falei aqui no blog. Um dos temas do romance é a suposta imortalidade adquirida pelas grandes personalidades e para falar sobre isso ele se coloca na mente de dois homens que entraram para a história: Johann Wolfgang von Goethe e Napoleão Bonaparte. Um por ser um grande artista e ter influenciado gerações de escritores, o outro como o bem sucedido e implacável estadista. Esses dois homens têm a seu favor a história e por isso, diferente dos artistas de interpretação, eles têm maiores chances de serem lembrados pela posteridade. Mas isso não convence a Milan Kundera acerca da banalidade deles. Em dado momento do livro, um dos personagens menciona que, antes de qualquer obra de um autor, ele prefere ler as suas biografias, porque elas são responsáveis por mostrar o lado comum e trivial por trás de todo homem aparentemente extraordinário.

Eu sei que meus argumentos são irrisórios para fazer mudar o pensamento que faz parte do senso comum da humanidade há tanto tempo e que as pessoas ainda se assombrarão ao vislumbrar o lado vulgar das pessoas que mais admiram ou a sua própria vulgaridade. Mas esse assombro não vai deixar de ser interessante para mim, porque ele me revela o lado ingênuo e infantil que carregamos por toda a vida, por deixarmos nossos olhos brilhar e nos iludirmos tão alegremente por todas as coisas que nos tira momentaneamente do comum. 

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