Uma pessoa neutra

Eram quatro horas da tarde e ainda havia três pessoas para serem atendidas. Duas já estavam ali esperando. Da sua mesa, a recepcionista via uma delas de frente e a outra estava um pouco mais afastada, sentada no sofá que ficava encostado na parede ao seu lado direito; ela olhava a tela do celular. Com o tempo que já tinha de trabalho no consultório, a moça já conhecia a maioria dos pacientes e um pouco da história deles. Claro que dizer história é um pouco forte, não as conhecia por inteiro, mas, através de conversas de elevador, ou na própria sala de espera, acabava conhecendo o que achava o suficiente para compreendê-los ou, ao menos, imaginar pelo que passavam.

A pessoa do seu canto direito, por exemplo, tinha um filho. Seu respeito por pessoas que têm filho sempre foi grande. Não é fácil cuidar de alguém. E quando esse filho já é adulto, o ato de ser mãe ou pai, ela pensava, ganha ares santos. Porque nessa etapa, eles deixam de ser cuidadores e educadores, para interceder de fora, deixando que o filho, com o tal do livre-arbítrio, faça suas escolhas. Aos pais, é reservado nesse momento o papel de observar com preocupação, como um expectador de uma luta que, além de torcer e incentivar, não pode fazer muito pelo seu ídolo que se digladia em um ringue. Sua angústia deve ser disfarçada, quase silenciosa, para não assustar e fazê-lo se afastar, ao mesmo tempo que o medo de uma possível omissão lhe tira o sono. A recepcionista imaginava, com compreensão, portanto, o que poderia levá-la até ali, a ficar naquela sala, olhando para o celular, esperando sua hora de ser atendida.

A pessoa que estava em sua frente, por sua vez, tinha filhos pequenos, então não conhecia ainda essa sensação. Sabia que era casada. Ela recostava-se no sofá com um olhar tão distante, tão disperso, que a recepcionista também podia imaginar pelo que passava. Conhecia aquela expressão, já havia passado por aquilo: é a imagem de quando as coisas não vão bem. Quando começamos a questionar a nossa importância na vida das pessoas com que vivemos, quando sentimos que não estamos sendo valorizados e a vida se apresenta como uma realidade morosa e sem sal.

As reflexões da recepcionista não duraram muito, como a maioria dos pensamentos que tinha em um dia trabalho, e ela já estava mais uma vez concentrada em seus afazeres, esquecida momentaneamente das pessoas naquela sala, até que a pessoa com filho crescido teve seu nome chamado e ela ergueu os olhos para vê-la entrar na sala do doutor. Nesse exato momento, chegou a terceira pessoa, a última do dia. Entrou agitada, cumprimentou-lhe gentilmente como sempre e sentou-se ao lado da pessoa com filhos pequenos e casada. 

Não sabia muito sobre essa última pessoa, apenas que era solteira, não tinha filhos de idade alguma e trabalhava. Ela lhe inspirava um sentimento diferente. Não sentia por ela curiosidade e, diferentemente das outras pessoas que ali aparecia, não lhe surgia nenhuma ideia de como seria sua vida e seus problemas. A verdade é que quando chegava alguém ali, suas teorias eram automaticamente formuladas, não era algo desejado como se fosse seu hobby criar uma narrativa para cada uma delas. Com essa terceira pessoa, por sua vez, as ideias simplesmente não lhe vinham e, por ser involuntário, também não se perguntava porquê – nem ao menos se dava conta. 

A recepcionista já se pegou muitas vezes imaginando bater um papo com algum dos pacientes. Já se imaginou conversando em um bar com a pessoa casada com filhos pequenos, as duas riam conversando sobre seus casamentos. A pessoa com filhos crescidos seria uma daquelas que poderia te aconselhar, a via mais como uma fonte de experiência. Curiosamente, a terceira pessoa, a que não lhe gerava suposições, nunca esteve presente em algum desses devaneios. Não era por mal, seu inconsciente apenas suponha que ela não tinha muito a lhe oferecer. Passou os olhos pela sala para olhar o relógio pendurado na parede e, sem querer, eles acabaram cruzando com os da terceira pessoa, que também a olhava, mas não lhe via. Sorriu displicente e a outra respondeu com um sorriso desanimado. Durou uma fração de segundo, até que a recepcionista voltou a olhar para a tela do computador, de volta ao trabalho.

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2 Comentários

  • Rene J. Martins

    Adorei seu texto e sua reflexão sobre este “julgamento involuntário” que todas as pessoas acabam fazendo sem ao menos perceber. Seria talvez um reflexo da sociedade que, de certa forma, impõe suas regras que acabam por nos moldar e fazer com que criemos determinados estereótipos que nos levam a imaginar muito sobre as pessoas de quem sabemos pouco ou quase nada? Muito interessante!

    • Eva Maia Malta

      Concordo com você. Os estereótipos que criamos também contribui para isso.

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