A fama de Clarice Lispector a precede, muito mais pela mística que a envolve, do que necessariamente por sua inegável qualidade. Clarice se tornou uma espécie de guru das redes sociais, cujas frases serve de legenda para publicações e selfies. Entretanto, apesar de já ter ouvido falar muito dela antes mesmo de ler qualquer obra sua, meu verdadeiro encontro com Clarice Lispector aconteceu por meio de A paixão segundo G.H., seu talvez mais famoso livro e que, sem dúvida, explica um pouco da fama de epifânica que sua autora carrega.
Eu não vou fazer aqui uma review do livro, ou dizer coisas como o “livro é bom, super indico”, pois o livro fala por si e quem gosta de literatura sabe que ele merece ser lido. Mas eu vou expor aqui minha experiência com ele como se fosse um encontro entre duas pessoas que, de tão impressionados, acabamos compartilhando com os próximos o nosso contato. Pois é assim que eu enxergo a leitura de A paixão segundo G.H.: como um primeiro encontro com Clarice Lispector.
Ao abrir o livro, a primeira coisa que encontramos é um recado da própria Clarice, “Esse livro é como um livro qualquer. Mas eu ficaria contente se fosse lido apenas por pessoas de alma já formada”. Uma frase intrigante, para dizer o mínimo. Afinal, que raios de alma formada é essa? Muitas pessoas podem entender que se trata de idade. Mas, segundo a própria Clarice, esse livro pode não ser compreendido por um experiente acadêmico e, ao mesmo tempo, ser o livro de cabeceira de uma jovem de dezessete anos. Então não, não se trata de idade.
É difícil julgar a formação de nossas almas; a cada ano que passa, achamos que enfim amadurecemos e que no anterior ainda não estávamos tão completos quanto hoje, já no ano seguinte pensaremos o mesmo sobre hoje. Eu sinceramente não sei se tenho alma formada, mas sei que se o tivesse lido há uns anos atrás – cinco? Quatro? – eu não teria entendido uma única palavra do ela nos diz. Eu precisei perder a minha “terceira perna” para entender GH e mesmo assim uma parte dela ainda ficou desconhecida para mim.
O primeiro fator em GH que o torna um livro peculiar é a falta de narração da forma que estamos habituados a ver. Clarice não conta uma história propriamente dita, ela fala de sensações acontecidas ao entrar em um quarto. Essa ação é a história do livro, seguida por seu encontro com uma barata. Ao encarar o inseto, G.H. questiona seu modo de vida com o do outro ser: ela, ser humano que era, tentava atribuir sentido a sua vida; a outra, animal, vivia consciente de sua insignificância, de sua condição de passageira e destinada ao esquecimento. Quem estava certa? É o questionamento que G.H faz e nós a acompanhamos. Com coragem, ela atribui o insosso à vida e o sabor à ilusão:
“Para o sal eu sempre estivera pronta, o sal era a transcendência que eu usava para poder sentir um gosto, e poder fugir do que eu chamava de ‘nada’… E o neutro era a vida que eu antes chamava de o nada.”
Entrar na mente de G.H., e talvez da própria Clarice, não é fácil. Se você se atrever a tentar, e eu incentivo que o faça, tente não racionalizar sobre o texto, apenas sinta. Se você também já olhou nos olhos do vazio, compreenderá. Do contrário, não se desanime: vai ver sua alma ainda não está pronta.
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